A VIDA DE UMA NADADORA TRANSPLANTADA

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Fonte Revista Sextante – UFRGS REPORTAGEM Rafaela Pereira

Clarissa Auler, com um novo coração, vive um recomeço. Devido à gravidade da sua enfermidade, ela ficou somente dois meses na lista de espera até receber a notícia de que tinha chegado sua vez. O pós-transplante foi outra batalha vencida, já que teve um sangramento no coração e, por pouco, não ocorreu a falência do novo órgão.

A bacharel em direito, que tem a moda e o crochê como suas paixões, trabalhava em uma grande empresa de varejo, em 2017, quando notou que seu corpo já não era o mesmo: “Eu segui trabalhando, estava indo bem, só que comecei a sentir cansaço, e o rendimento do meu trabalho decaiu. Minhas chefes começaram a me pressionar e, no final das contas, acabei não tendo o contrato renovado”, conta Clarissa.

“Quem secava meu cabelo era a minha mãe. Para facilitar, cortei na altura do queixo. Era difícil pegar um prato, escovar os dentes, cansativo ao extremo”

Foi ainda em 2017 que notou uma preocupação médica além do esperado. Seu pneumologista solicitou que ela procurasse com urgência um cardiologista, que logo diagnosticou uma insuficiência cardíaca grave. Clarissa foi imediatamente internada em um hospital. Após ouvir do médico que sua única alternativa era entrar na lista de espera para transplantar um coração, Clarissa contou com o apoio da família para tudo, inclusive para realizar tarefas diárias que a doença não permitia. “Nessa época tudo era muito complicado. Difícil para tomar banho, saía supercansada. Quem secava meu cabelo era a minha mãe. Para facilitar, cortei na altura do queixo. Era difícil pegar um prato, escovar os dentes, cansativo ao extremo”, relembra.

Por sua família, encontrou forças para seguir em frente e mudar hábitos. “Eu sempre fui muito reclamona. Reclamava porque não passava na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], em concursos, reclamava de não conseguir levar a minha vida profissional a sério mesmo enquanto estava doente”, lembra. O pai segurava a mão da filha para dormir no hospital. A mãe passou a ser companhia de caminhadas após a recuperação e apoiou sua luta.

No fim de janeiro de 2023, Clarissa nadou 500 metros em prol da conscientização para doação de órgãos. Disputou da competição Rainha do Mar, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Além de ser uma paixão desde pequena, a prática da natação melhora a imunidade do seu corpo, evitando novas chances de rejeição.

Clarissa conseguiu um doador compatível, ganhou um novo coração e, hoje, faz da sua experiência uma causa. Encontra formas de estimular mais pessoas a serem doadoras. Uma delas é fazendo campanhas nas redes sociais. Outra, é organizando caminhadas para divulgar a importância da doação. Clarissa conseguiu encontrar um novo coração e se reencontrou, e é isso que ela deseja para as quase 60 mil pessoas que ainda esperam por esse encontro.

A FILA É GRANDE

A doação de órgãos foi uma grande descoberta para a medicina. No Século 20, mais precisamente em 1954, foi realizado nos Estados Unidos o primeiro transplante humano de órgão, um rim. No Brasil, ocorreu somente em 1965, sendo o transplante também de rim. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil é o segundo país que mais realiza transplantes no mundo, somente atrás dos Estados Unidos. Estima-se que em 2021, no país, 23,5 mil cirurgias foram feitas.

De acordo com a Lei N°9.434, de 1997, a doação de órgãos ou tecidos no Brasil pode ser feita em vida, como é o caso de pulmão, rim, fígado e medula, ou após declaração de morte encefálica por, no mínimo, dois médicos que não fazem parte da equipe de transplante. Em 2021, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgão (ABTO), 43% das mortes encefálicas no Brasil não se transformaram em recomeço para quem tanto aguarda para ter seu nome retirado da lista de espera única nacional. O motivo foi a não autorização por parte dos familiares. Em 2022, esse número cresceu para 45%.

No Rio Grande do Sul,  conforme a Central Estadual de Transplantes, das 732 notificações de morte encefálica no ano passado, apenas 197 viraram doações efetivas. Livia Goldraic, médica especializada em insuficiência cardíaca e atuante na área de transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, cita uma das principais dificuldades para melhorar esse número de doações: “Normalmente a morte encefálica ocorre em mortes violentas e inesperadas, como acidente de trânsito, ou situações agudas, como um AVC”. Nesses casos, pode ser que a pessoa falecida ainda não tenha conversado com seus parentes dizendo que é uma doadora. Por lei, desde 1997, somente familiares podem dar o aceite para a retirada de órgãos.

Com toda a responsabilidade da decisão num momento de fragilidade pela perda, surgem dúvidas, e muitas famílias acabam negando. Lívia conta que há questionamentos sobre a finalidade do órgão, ou se alguém se beneficiará financeiramente. Porém, todo transplante é gratuito, sem nenhum ganho financeiro, evitando uma possível venda de órgãos. Além dessas dúvidas, surgem impasses culturais.

É natural que, no Brasil, onde há tanta diversidade religiosa, diversas temáticas sejam tratadas pautando a religião como juízo de valor. Para a doação de órgãos, o dogma muitas vezes impede a aceitação por parte das famílias. Além disso, a ansiedade para iniciar as cerimônias de despedida do parente falecido faz com que familiares não aceitem contribuir com novos recomeços.

“Questões religiosas e o atraso no processo de liberação do corpo afastam algumas doações. Culturalmente, a organização de um velório começa imediatamente após o falecimento, no máximo no dia seguinte já é o velório e o enterro. Na cultura norte-americana, as pessoas terão o seu funeral cinco ou sete dias depois. Isso permite que não seja ruim para a família uma demora de algumas horas para realização de exames e a consequente retirada dos órgãos para então liberar o corpo”, diz a médica.

REPORTAGEM Rafaela Pereira

https://www.ufrgs.br/sextante/a-paciencia-da-espera/